O livro O retrato de Dorian Gray permite ao leitor a fascinante viagem em uma história cheia de conflitos, desejos e descobertas de sentimentos que permaneciam escondidos ou ainda não haviam aflorado na vida dos personagens, entre os quais se destaca o jovem Dorian Gray. A influência maior na vida do personagem em relação à sua beleza ocorre no momento em que este tem um encontro casual com Lorde Henry. O lorde, homem de palavras que influenciavam todos aqueles com os quais mantinha contato, foi de fundamental importância na identidade assumida por Dorian, visto que seu olhar a respeito da beleza do rapaz e da injustiça da vida - que o transformaria em rugas e cansaço - transformou a mentalidade deste jovem, fazendo-o assumir uma personalidade mesquinha e egoísta.
A essência da beleza em O retrato de Dorian Gray produz um relacionamento próximo e idealizador entre homens, o que provoca discussão acerca do envolvimento entre os três personagens iniciais. O amor sentido pelo pintor à beleza de Dorian estaria ligado apenas à arte, ou seus sentimentos em relação ao rapaz estavam envoltos em uma permissividade que não se mostrava numa sociedade falocêntrica, na qual os relacionamentos são apenas permitidos entre pessoas de sexos opostos?
A admiração do Lorde Henry ao jovem rapaz também deixa transparecer um desejo que se inicia de maneira gentil, respeitosa e influenciadora, pois o jovem rapaz torna-se tão próximo a este novo amigo, que a partir do momento em que o conhece, abre mão dos encontros com o pintor Basil para encontrar-se constantemente com o lorde.
Analisando o fator estético, vê-se que a libertação do artista da realidade pragmática se dá por meio de sua criação: seja o escrever, o esculpir, o modelar, o pintar etc. É através da partilha entre a criação e o criador que nascerá o elo mantenedor de uma identidade uma entre os dois – que deixam de existir individualmente para se tornarem uma representação ilimitada do artista, ou seja, sua extensão. Como afirma Freud:
A arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que [...] os esforços de onipotência do homem primitivo se acham em pleno vigor. (FREUD Apud SANTOS, 2003, p. 21).
Dentro desse ideal artístico, encontra-se a obra O Retrato de Dorian Gray: o desejo de pintar um quadro idêntico ao humano fez com que Basil Hallward construísse a imagem de Dorian de forma tão real, a ponto de o jovem querer que o quadro envelheça e ele continue com a beleza que temporariamente tem: “eu ficarei velho, aniquilado, hediondo!... Esta pintura continuará sempre fresca [...] Ah! Se fosse possível [...] conservar-me novo e se essa pintura pudesse envelhecer! Por isto eu daria tudo!... [...] Até minha alma!...” (WILDE, 2006, p. 64-65).
O transpor do real, vivido por Basil, lhe proporcionou a criação de uma figura que duraria anos, décadas ou mesmo séculos. É nesse aspecto que se permite o questionamento acerca da dura realidade na qual estamos inseridos: o homem constrói objetos, obras magníficas, ao passo que ele mesmo se desfaz com o passar dos anos, nem mesmo chegando a viver metade de duração da sua obra.
É este o limite da existência: saber que as coisas criadas por suas mãos terão mais valor do que o próprio artista. Sendo assim, o que motiva o homem a criar, expressando-se das formas mais variadas? Mozart, Choppin, Beethoven, Leonardo da Vinci, Tarsila do Amaral, Oscar Niemeyer, Machado de Assis, entre tantos outros artistas que criaram, mesmo sabendo que estariam a cada dia mais próximos de seu fim, deixando suas criações para a posteridade, sendo lembrados apenas pela obra a qual criaram e não por quem foram.
Para entender esse desejo pela arte, tem-se que considerar que para o artista, deixar de criar poderia significar o amputar de uma parte de seu próprio corpo, haja visto que assim como afirma Duarte Jr. “a arte é-nos uma espécie de espelho, face ao qual descobrimos e conhecemos aspectos de nosso sentir, muito dos quais até então insuspeitados” (DUARTE JR. Apud SANTOS, 2003, p. 31). Ou seja, o criar vem reforçar a identidade que temos enquanto seres que necessitam transpor um mundo de limitações, para encontrar um ideal pessoal nas representações mais íntimas e próprias de cada um. Dessa forma, “a arte [...] surge [...] como o mais forte instrumento na luta pela existência, e não se pode admitir [...] que o seu papel se reduza a comunicar sentimentos.” (VYGOTSKY Apud SANTOS, 2003, p. 78).
Esse mesmo ideal é também visionado por Basil: nos momentos em que fala de sua obra, trata-a como uma extensão de seu próprio corpo, que revelaria traços muito mais do próprio pintor do que da obra em si:
[...] todo retrato pintado compreensivelmente é um retrato do artista, não do modelo. O modelo é puramente o acidente, a ocasião. Não é ele o revelado pelo pintor; é antes o pintor quem se revela na tela colorida. A razão que me impede de exibir esse quadro consiste no terror de, por meio dele, patentear o segredo de minha alma! (WILDE, 2003, p. 38).
O tratamento dado pelo artista Basil à sua obra, reforça a idéia de que o criar é tão fundamental na vida do artista quanto o é o comer, o beber, pois através desta o mesmo se expressa, modifica tudo aquilo que em seu olhar pode estar errado, aludindo sempre à visão de fuga da realidade pragmática que nos rodeia, nos limita, e muitas vezes deixa-nos insensíveis quanto à beleza, grandeza e magnitude tanto da natureza quanto da própria vida. É aí que o artista consegue se desvencilhar, alcançando um patamar de introspecção: “o artista, através de sua criação, elabora suas fantasias, desejos, medos, ansiedades e, [...], consegue se livrar da carga afetiva que certamente o imobilizaria, caso não dispusesse desse recurso.” (ANTONIO GUINHO Apud SANTOS, 2003, p. 87).
Não se trata do simplesmente fugir, temer a realidade que lhe é imposta, mas voltar o olhar para um ângulo diferente: realçar a beleza interior, diminuir as fronteiras entre vidas e os seres que a ela pertencem, mostrando que o transfigurar do real pode trazer benefícios não só ao artista, mas também a todos aqueles que sabem admirar suas obras, dando-lhes significado e valor.
Dorian Gray demonstra certa incompreensão quanto ao valor do quadro que fora pintado em sua homenagem: não foi com intenção de humilhar ou mesmo apontar que este envelheceria enquanto o quadro continuaria o mesmo, e sim o amor que Basil expressou nessa obra, a ponto de entregar-se inteiramente na confecção de uma imagem semelhante ao original, dando vida a um simples quadro, mostrando sua extensão artística, aprimorando a imagem de Dorian enquanto mortal, incapaz de transpor as fronteiras que limitam a vida e norteiam os nossos passos – onde quer que formos.
Dentro desses questionamentos e observações, nota-se que a estruturação da vida humana não se limita ao pensar no nascer e no morrer, mas sim no percurso que temos durante esses dois pontos extremos de nossa existência. Criar, inventar, produzir indica um aproveitamento maior de nossa existência, dando-nos espaço para interagir com a vida, com o meio, com os seres que estão à nossa volta. Vê-se, portanto, que o artista – ser limitado, incapaz de acompanhar sequer todo o percurso que sua obra irá trilhar –, não fica apenas como alguém esquecido e retido em sua sepultura, mas transfigura-se para além, muito além dos seus dias, através das obras que criou, tendo uma vida eterna nas páginas de um livro, na moldura de um quadro, nos percursos de uma estrada, até mesmo no vôo de um avião – mostrando que mesmo sendo a morte o nosso fim, somos capazes de voar, superando limites considerados inatingíveis.
Portanto, a arte não serve apenas como refúgio para uma vida desesperadora e cruel, mas uma ponte para que novas gerações conheçam os pensamentos, sonhos e desejos de uma sociedade que passou, mas que deixou registrado tudo aquilo que a comoveu, a instigou na busca por um objetivo, um ideal de interesses compartilhados e passados de geração em geração para que a posteridade pudesse confrontar e estabelecer um paralelo entre vidas que iniciam e outras que acabam de maneira simples, porém bela.
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